22 dezembro 2013

História Verdadeira de Natal, anos 40

 “Menino, peço-te a graça/ de não fazer mais poema/de Natal./ Um dois ou três ainda passa…/ industrializar o tema, eis o mal.”
Carlos Drummond de Andrade

Eu acredito nos mistérios que determinam certas histórias de vida, tão diferentes e aventurosas, que nos fazem pensar que ficção e realidade sejam a mesma coisa. Esta história passa-se numa aldeia, no norte de Portugal. Ali morava, muito pobre, sustentada pelo trabalho da terra, uma mulher mãe de cinco filhos, todos rapazes: Abel, Amadeu, João, Cristóvão, Joaquim. Contava-se que essa mulher tinha o dom especial para adivinhar as coisas, as boas e as más, ou as duas, que às vezes há males que vêm por bem, como se costuma dizer. Ela tinha uns sonhos muito claros, que não se lhe apagavam de repente. E quando nasceu o filho mais pequeno, Joaquim, já ela vestia o luto do marido.

Nesta altura, o povo sabia que os portugueses se repartem entre os que ficam e os que vão, que sempre assim foi e assim será, talvez a nossa terra fosse pequena de mais para a têmpera de quem aqui nasceu recusando a pobreza, na aventura de enfrentar o desconhecido mundo. As famílias viviam então o vazio dos filhos que tomavam o rumo de África ou do Brasil, nessa altura os rapazes daquelas terras não pensavam senão nos imensos espaços abertos, onde toda a liberdade poderia acontecer-lhes. Sabiam-no até os mais simples, porque de pais para filhos se contavam casos de viagens, debandadas e desaparecimentos, cartas de chamadas, travessias de mar, porque os padres lhes acrescentavam outras morais de salvação de alma, porque não havia uma aldeia onde não se esperasse ansiosa e doloridamente a carta, o recado, a notícia de vida ou de morte. “Espero que todos estejam de saúde, que eu bem graças a deus, o dinheiro, estou a juntá-lo, feliz Natal que muito me lembro de todos nesta quadra e com estas duas letras vai um abraço” era o que mais as famílias nas mais remotas serranias queriam poder ler, em voz alta. Como se cada homem tivesse o destino marcado, todos os mais novos desejavam que chegasse a sua vez de irem embora da terra, porque o mundo é grande e está além do pôr-do-sol de cada dia.

Desde que nasceu, Joaquim foi o mais perfeito dos irmãos, o mais esperto, o mais dócil e meigo. Mas tinha que ser. A mãe padecia de sonhos. Um homem sem cara, a dizer-lhe: “Quem to leva to traz”. Com a sabedoria certa das mães, ela acreditava. E temia. Até que aconteceu. Nas vésperas daquele Natal, já noite feita, a mãe a preparar a consoada. Alguém bate à porta.

É o padrinho de Joaquim. Veio de surpresa à terra, veio fechar um negócio, veio levar o pequeno Joaquim para o Brasil. Dar-lhe educação, ensinar-lhe ofício, fazer dele um homem. “Deixe-me ir, minha mãe.”

Mais um Natal e outro e muitos se passaram, sem cartas nem notícias. E de repente, nesta noite de Natal, ouvem-se pancadas na  porta. Joaquim, feito homem, veio tratar de um comércio. “Sou eu, minha mãe. Fui e voltei. Amanhã vou de torna viagem, para lá.”   

Leonor Xavier  
12.2013




















 

 

 

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