1. Não há ano zero. Sabemos que,
sob o Império Romano, o tempo era contado a partir da fundação de Roma. Quando,
no séc. VI d.C., a Igreja romana decidiu contar os anos a partir do nascimento
de Jesus Cristo, deparou com um problema. A festa já era celebrada no dia 25 de
Dezembro. Ficou determinado que o ano I começaria no 1º de Janeiro seguinte,
que corresponderia ao ano 754 da fundação de Roma. O ano anterior (753) foi
designado o ano I a.C.. Resultado: passamos do – 1 para o +1.
Os cristãos começaram a celebrar a Páscoa muito cedo,
mas só encontramos referências ao Natal a partir do ano 354. Ao escolher
celebrar a festa do Natal a 25 de Dezembro estava-se, de facto, a cristianizar a
festa pagã do Sol invictus, que marca
o renascer do sol, depois do solstício de Inverno. Bela inculturação.
Para Jesus, como para qualquer ser humano da
Antiguidade, excepto príncipes e alta linhagem, é ignorada a data exacta do
nascimento. Há uma hipótese em 365 de que tenha sido a 25. Quanto ao ano,
estamos um pouco melhor, pois sabemos que Jesus nasceu nos últimos tempos de Herodes,
o Grande[i], que
morreu em 750 da fundação de Roma, o que corresponde a menos 4 do calendário
actual. No séc. VI, um monge, um certo Dionísio, o Pequeno, ao fazer o cálculo
enganou-se em cerca de quatro anos, mas as contas não foram alteradas. Daí que
o nascimento de Jesus, calculado segundo a numeração actual, deve ser situado
aproximadamente, cinco ou seis anos antes. Não
há qualquer indicação acerca do mês.
Valerá a pena toda essa contabilidade? Serve, pelo
menos, para não deixar que a figura de Jesus resvale para o puro mito, como
diziam alguns autores dos séculos XVIII e XIX. É imensa a literatura em torno
da problemática do Cristo da fé e do Jesus da história. Jesus não deixou nada
escrito e não sabemos o que os seus discípulos contaram.
2. Deixando de lado todo o
conjunto de textos apócrifos, temos quatro narrativas do Evangelho consagradas
no cânone: Marcos, Mateus, Lucas e João, com muito em comum, mas também com
diferenças. Marcos pretende mostrar que Jesus é Filho de Deus. A preocupação de
Mateus é situar Jesus Cristo na linha dos descendentes de David, como membro da
casa de Abraão, numa perspectiva de cumprimento da esperança messiânica de
Israel. Lucas, como ele próprio diz, conhece os trabalhos realizados por outros
narradores, mas a sua intenção é de ir mais ao fundo. Sente necessidade de tudo
investigar desde a origem para garantir ao amigo
Teófilo a certeza da sua fé. Para a narrativa de João, escrita 40 a 50 anos
depois da de Marcos, a partir de uma comunidade composta de cristãos vindos do
judaísmo e do paganismo, Jesus é a luz do mundo.
Há quem diga que, de Jesus, só temos interpretações. É
claro que os evangelistas não procuraram fazer a sua biografia, segundo os
critérios actuais da elaboração histórica. Interessava-lhes a significação da
presença de Jesus Ressuscitado nas comunidades, mediante a criatividade do seu
espírito que procura fazer novas todas as
coisas. Não podem, no entanto, apagar alguns dados históricos. Jesus nasceu
por volta do ano 4 a.C.. Viveu, em Nazaré, a sua vida de infância e de adulto,
mais ou menos, até aos 27 anos. Durante algum tempo foi discípulo de João
Baptista. A partir de determinada altura, seguiu o seu próprio caminho, de
taumaturgo e pregador peripatético, à maneira de alguns filósofos. As suas
posições nem sempre coincidiam com as dos fariseus, saduceus, essénios,
baptistas, herodianos e zelotas. Com a pregação do Reino de Deus desencadeou um
movimento popular político-religioso que cedo chegou aos ouvidos dos sacerdotes
e saduceus, levantando suspeitas e interrogações no Sinédrio.
Jesus ter-se-á rodeado de 12 homens – número simbólico
- que se tornaram seus discípulos e admiradores, só que nem sempre o
compreendiam. Por volta dos 30 anos fez uma viagem a Jerusalém para celebrar a
Páscoa. A sua pregação e acção profética
no Templo suscitam complicações religiosas e políticas. Celebra uma ceia pascal
de despedida com os discípulos. É preso e julgado pelo Sinédrio como blasfemo,
com sentença de pena de morte. Entregue ao governador romano da Judeia, Pôncio
Pilatos, é condenado à morte por crucifixão. O papel das mulheres discípulas
tem de ter sido muito relevante, pois as narrativas masculinas não as
conseguiram ocultar.
3. Segundo os textos do Novo
Testamento, houve muita competição entre os discípulos e interpretações
diversas do papel de Jesus, na história humana. Provocou cristologias muito
arriscadas, segundo os contextos religiosos e culturais. Ninguém se apresentou
como seu concorrente ou para o substituir. Tudo o que ficou escrito é sempre a
respeito de Jesus, o Cristo, que será nosso contemporâneo até ao fim dos
tempos. Cada pessoa e cada geração poderão perguntar-se: que tem ele a ver
comigo, que tenho eu a ver com ele? O Evangelho ainda não está todo escrito.
Está a acontecer. O encontro marcado com o Senhor da história depende do
encontro com as vítimas da história. Ele não vive só no céu e no sacrário. É o
clandestino que vive em todos os que aceitam a sua companhia.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
22.12.2013
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