1. No passado dia 11, a Revista Time elegeu o Papa
Francisco como a pessoa do ano 2013. É raro que um novo protagonista consiga
tanta atenção no palco do mundo e em tão pouco tempo. Cativou milhões que
tinham perdido a esperança na Igreja. Nancy Gibbs, directora da Time,
sintetizou as razões substanciais da escolha feita: “em nove meses, ele soube
colocar-se no centro das discussões essenciais da nossa época: a riqueza e a
pobreza, a equidade e a justiça, a transparência, a modernidade, a
globalização, o papel da mulher, a natureza do casamento, as tentações do
poder”.
O Papa Francisco sabia que a primeira coisa que
lhe era pedida pela opinião pública era uma operação de limpeza da Cúria
pontifícia. O mais urgente seria varrer a casa: pôr a andar os que não queriam
ou já não podiam mudar e formar um governo novo. Tinha-se tornado insuportável,
para qualquer católico decente, ver a insistência dos meios de comunicação em
narrativas de tenebrosos escândalos financeiros da banca do Vaticano e as
revoadas de padres e até de bispos acusados de pedofilia. Era evidente que as
carradas de publicações moralistas, revestidas de pinceladas teológicas e de unção
espiritualista, assinadas pelos papas, tinham perdido qualquer encanto. As
periódicas campanhas temáticas, distribuídas pelas dioceses, tinham esgotado a
sua precária eficácia. As viagens dos papas eram caras e entendidas como fuga
às reformas de fundo, sempre adiadas. Que fazer então?
2. O Papa tomou algumas decisões, mas não caiu na
tentação de governar por decretos. Era preciso mudar tudo, a começar por ele
próprio e do modo mais rápido e simples. Foi o que fez logo na primeira
saudação, à janela do Vaticano e nunca mais parou.
Nos meios conservadores, há muitas vozes contra as
suas movimentações e declarações: este papa está a estragar a Igreja e a minar
a sua doutrina mais segura; é tão descontraído a falar das coisas mais sérias
que não parece o supremo guardião das certezas, mas um semeador de dúvidas; não
sendo economista, atreve-se a dizer que esta economia de exclusão e de
desigualdade mata; atacou o capitalismo como uma nova tirania; os alertas
contra a corrupção, dentro e fora do Vaticano, colocaram-no na mira das máfias.
Para tentar
um balanço de nove meses de Papa, convém não perder de vista a história. A
Igreja Católica Romana, mediante a ousadia inesperada e descontraída do velho
Papa João XXIII, tinha começado uma grande revolução religiosa, no mundo
contemporâneo. Ao convocar o Concílio Vaticano II, apontou um caminho que
devolvia a palavra à Igreja, não identificada com a hierarquia, mas com o povo
da graça de Deus, no qual, todos são sujeitos, em comunhão, na vida da Igreja.
Para as
gerações mais novas, sejam leigos ou clérigos, a memória actuante desse
acontecimento dos anos 60 do século passado (1962-1965), perdeu-se. Mesmo os
que o acompanharam e seguiram com entusiasmo acabaram por ter a sensação de que
tudo aquilo tinha sido num belo sonho sem futuro. Eram os “vencidos do
catolicismo” do poema de Ruy Belo e dos comentários de João Bénard da Costa.
Para os que consideraram o Vaticano II como um desastre para a Igreja, o
importante era esquecer esse concílio.
Tanto os que se sentiram defraudados, como os que
consideravam que o Concílio tinha sido uma má ideia, as reacções pró e contra
não tiveram a mesma intensidade e as mesmas manifestações, em todos os grupos.
No entanto, a mentalidade restauracionista do pós-concílio tentou agir de forma
global: nomear bispos conservadores para todo o lado, sobretudo para a América
Latina, publicar um novo Direito Canónico e um Catecismo Católico que os
equipasse para recorrer à doutrina, sã e segura, e às boas orientações
pastorais.
Importante também era eliminar as correntes
teológicas – da Europa Central, Estados Unidos, América Latina, Ásia e África –
que pudessem questionar essa normalização. No terreno, ficou quase só a
Teologia do cardeal Ratzinger e dos que a repetiam. Ele era o teólogo da
Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, o próprio Papa.
Enquanto tudo se passava no campo teológico e na
administração eclesiástica, os ecos públicos desse mal-estar eram sempre
limitados. Tudo mudou, quando os meios de comunicação começaram a encher-se de
casos terríveis de pedofilia e da lavagem de dinheiro, como já referimos. Aí já
não era possível alimentar hipocrisias. Os que procuraram fazer esquecer o que
o Vaticano II tinha de mais inovador e pensavam recuperar o prestígio da
Igreja, mediante operações restauracionistas ou de movimentos de santidade
privilegiada, ficaram sem qualquer estratégia. João Paulo II deixou-se imolar
pelo sacrifício e Bento XVI chegou à conclusão que não tinha saídas para nada.
Entretanto, o cristianismo, em vários países da América Latina, enchia as
Igrejas Pentecostais.
3. No dia 8 de Agosto, o Papa Francisco publicou
um conjunto de novas regras sobre o combate à corrupção e à lavagem de
dinheiro, que passou pela criação de uma Comissão de Segurança Financeira no
Vaticano com a finalidade de coordenar as Autoridades competentes da Santa Sé e
do Estado da Cidade do Vaticano em matéria de prevenção e de combate à lavagem
de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de
destruição maciça. A Carta Apostólica foi publicada em forma de Motu Proprio, o
que significa, nas regras do Vaticano, que é uma iniciativa pessoal do Papa. Os
artigos acerca da finalidade da referida Comissão denunciam que os escândalos
atribuídos ao Instituto para as Obras de Religião (IOR), mais conhecido como
Banco do Vaticano, não eram criações dos meios de comunicação.
Muitas vezes, decretos e comissões servem para
adiar o inadiável. Este Papa começou por assumir e continua a incarnar aquilo
que propõe aos outros membros da Igreja. Para ele, a Igreja não é a hierarquia.
Esta é apenas um conjunto de serviços instituídos para escutar, animar e
orientar as comunidades cristãs. Mas a hierarquia, antes de ensinar, tem de
aprender. As comunidades cristãs têm de viver na transformação do mundo, a
partir dos excluídos, dos pobres, de todas as periferias.
O Papa Francisco está, pela sua prática e pelas
suas declarações, a ajudar os católicos, as outras igrejas, as outras
religiões, os agnósticos e os ateus a olhar o mundo, não a partir dos
multimilionários e dos movimentos da Bolsa, mas a partir dos frutos de miséria
gerados pela idolatria do dinheiro, do lucro a qualquer preço. Para pronunciar
a muito glosada expressão, “esta economia mata”, não precisa de nenhum curso
nas mais famosas faculdades de economia e gestão, católicas ou não. Basta ter
os olhos abertos. Se ele não tomasse atitudes, não abordasse a questão do
desemprego e da situação dos idosos e das crianças pobres, não fazia a ruptura com
o mundo das estatísticas, o mundo dos números que abstraem das pessoas. Se
fosse mais um fanático das redes e da Internet, teria apenas um contacto
virtual com os pobres, sem cheiros e sem incómodos.
Algumas pessoas escandalizam-se com o lugar que
ele dá às crianças e aos adolescentes “problemáticos”. A verdade é que deixou
que uma criança de seis anos ocupasse a Sede Apostólica, que um bebé lhe
tirasse o solidéu e já chegou a colocar este boné sagrado na cabeça de uma
miúda.
Há dois mil anos, os apóstolos aborreciam-se ao
verem as crianças seduzidas por Jesus e procuravam afastá-las. Agora, dizem que
o Papa está a profanar as vestes sagradas. O Papa sabe que as crianças são,
diariamente, vítimas de exploração e de maus-tratos, sobretudo, as crianças e
os adolescentes que vivem na rua: 120 milhões no mundo inteiro e 30 milhões só
na África.
Dir-se-á que, nestes nove meses, ainda não teve
tempo para se dedicar às mulheres, as mais excluídas na orientação da Igreja,
apesar de terem sido elas as enviadas pelo Ressuscitado para evangelizarem os
Apóstolos e de, por enquanto, ainda serem a grande maioria. Herdou um terreno
minado pela Carta Apostólica, de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis
(22.05.1994). As teólogas feministas e os movimentos de mulheres cristãs
certamente o irão ajudar a superar esta dificuldade, que nem é das maiores.
Ter escolhido o caminho de Jesus Cristo, em pleno
século XXI, corre riscos e as ameaças já começaram. Mas seguindo por esse
caminho também poderá dizer: eu venci o mundanismo.
Frei Bento Domingues, O.P.
Revista 2 do Público de 22.12.2013
Pg 12-15
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