21 julho 2013

À PROCURA DA PALAVRA



 
 
À PROCURA DA PALAVRA
P. Vitor Gonçalves
DOMINGO XVI COMUM  Ano C
"Maria escolheu a melhor parte.”
Lc 10, 42
 “Uma só é necessária”
 Nunca gostei da expressão “doméstica” para designar a profissão de incontáveis mulheres e mães. Para além de sugerir alguém “domesticado”, sempre se desvalorizou o trabalho incalculável em tempo e dedicação que uma casa e uma família requerem. Talvez pudesse definir-se como “gestora de cuidados familiares”, “licenciada em tudo e mais alguma coisa”, “chefe do governo familiar”. Na riqueza destes novos tempos de partilha das responsabilidades associadas a uma casa e a uma família, a “fatia de leão” continua a pertencer à mulher!
No tempo de Jesus todos os trabalhos da casa repousavam ainda mais nos ombros da mulher. Assim, é natural a atitude de Marta em ocupar-se das actividades próprias para acolher aquele hóspede tão especial que é Jesus. O que não é usual (e pouco próprio, como vemos pelas palavras que lhe dirige a irmã) é a atitude de Maria: sentada aos pés de Jesus a escutar as suas palavras. É a atitude do discípulo, que coloca em primeiro lugar a escuta do Mestre. E também isso é novo e bem referido por São Lucas: muitas discípulas seguiam Jesus. A resposta de Jesus não põe em causa o trabalho que generosamente Marta desempenha, mas sim que ela fique tão absorvida e atarefada, a ponto de perder a sua paz interior. E sublinha essa novidade de que também a mulher é chamada a ser discípula, com a mesma igualdade e dignidade dos “habituais” discípulos varões! O acolhimento de Jesus é acolhimento da sua palavra e da sua presença; não é gastar-se a “fazer coisas” cuja necessidade imediata pode ser facilmente discutível.
A escuta da Palavra de Deus será sempre um dos maiores desafios do cristão. Escutar parece não ser produtivo, não se vêm os seus efeitos imediatos (ao contrário do “fazer” que, mal ou bem, se vê imediatamente). Na escuta, o grande trabalho é interior, são os pensamentos, as perguntas e respostas, o conhecimento pessoal, que se tornam a matéria para as grandes realizações. Gosto de pensar que S. Lucas nos dá Maria como modelo de escuta porque Jesus encontrou nas mulheres as melhores ouvintes da sua boa nova. Tantas vezes, ainda hoje, sem voz, elas são verdadeiras especialistas em escutar, e isso dá fruto a seu tempo de muitas formas. Como cultivamos esta escuta de Jesus na nossa vida pessoal e comunitária? Como alimentamos as palavras que dizemos com a escuta do que Deus nos diz?
Ando a ler um livro que tem por título “Uma nova oportunidade para o Evangelho”. Tem servido à renovação pastoral em algumas dioceses de França. Duas das experiências nele referidas vão ao encontro do evangelho de hoje: a “Mesa da Palavra” (“um grupo humano em que os participantes estão ao alcance da voz uns dos outros. Ela evoca a convivialidade de palavras livres que se troca, numa escuta e benevolência mútuas (...) A Palavra viva toma a seu cargo a vida concreta dos leitores”) e as “Casas do Evangelho” (“…encontros regulares de cristãos, não nas salas do centro paroquial, mas em casa de um ou de outro (…) Encontrar-se para ler juntos relatos do Evangelho, colocar-se à escuta da Palavra que aí se revela, deixar-se transformar por ela.”). Talvez seja assim que descobrimos a “coisa mais necessária”. É possível tentar?
         in Voz da Verdade 21.07.2013
 
À PROCURA DA PALAVRA
P. Vitor Gonçalves
 
DOMINGO XV COMUM Ano C
 "Querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo".
Lc 10, 28
 
O "próximo"... em Aushwitz
 
 Podemos ler em livros, ver em filmes e documentários, imaginar a partir de imagens, mas pisar o terreno de Aushwitz e de Birkenau na Polónia, dois dos vários campos de concentração e extermínio do regime nazi, é indescritível. Depois das paisagens verdes e belas e do esplendor dos inúmeros santuários polacos, estes lugares de dor e absurdo não deixam ninguém indiferente. Alguém disse um dia, perante tanta barbárie e desumanidade, que "Deus morreu em Aushwitz", mas é preciso não esquecer que que a paixão de Jesus continua na de cada pessoa que sofre, que a maldade foi e será vencida de muitas maneiras. E se estes lugares parecem concentrações do mal que o ser humano é capaz de inventar, é preciso pensar que o mal acontece e permanece pela força de alguns e pela indiferença de muitos. Os caminhos de Jerusalém para Jericó onde há quem esteja caído, meio morto e abandonado, são, afinal, os caminhos de cada um de nós.
         Impressiona imaginar cada pessoa por detrás dos milhões que aqui morreram, o inferno que era a vida dos que sobreviviam às viagens, e as assombrosas formas de matar e causar sofrimento. No corpo,  mas sobretudo, no espírito. Dizia a nossa guia que eram "sofisticadas fábricas de matar"! O saber humano ao serviço da bestialidade, a dignidade da pessoa espezinhada e destruída. E continua tão actual a frase de Wladyslaw Bartoswewski, um sobrevivente de Aushwitz: "Milhões de pessoas no mundo sabem o que foi Aushwitz, mas a questão básica continua no consciente e memória das pessoas. E depende somente da sua decisão se esta tragédia voltará a acontecer. Somente as pessoas puderam causá-la e somente as pessoas podem impedi-la." Podemos imaginar o demónio fora de nós mas, pelos gestos ou pela indiferença, onde ele continua a dominar é no coração e no pensamento de quem o deixa crescer dentro de si. E o mal "organizado" pode revestir muitos nomes, ideologias, políticas e economias, mas sempre será o domínio ou a superioridade sobre um ou muitos seres humanos.
         Dava jeito ter uma lista de "próximos", não muito longa para estar sempre em dia com as obrigações. Mas Jesus, que parece não gostar muito de listas, nem de obrigações nem de pecados (quem as aprecia é normalmente quem se especializa em julgar os outros!), valoriza a atenção e o coração generoso. Em cada situação é importante o outro e a sua circunstância, ainda que haja urgência na viagem ou actividades que parecem inadiáveis. O servidor do templo e o sacerdote que regressam das celebrações sagradas e belas de Jerusalém ficam mal na fotografia. Tão " junto de Deus" e tão distantes dos homens, eles são um espelho para a nossa religiosidade. Afinal o "amor a Deus" pode "vacinar-nos" do contágio que Jesus veio espalhar: o próximo tem nome e rosto e está sempre perto de nós. Pode não estar caído à maneira do Evangelho, e talvez o sofrimento não seja visível, mas o gesto de cada um pode fazer a diferença. A indústria de matar alimenta-se da indiferença; a obra do amor de Deus cresce com as nossas mãos estendidas. Hoje mesmo, há alguém de quem te podes aproximar?
         in Voz da Verdade 14.07.2013
 

 

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