1. Para quem estiver,
como F. Pessoa, ”gravemente atento à importância misteriosa de existir”, a
pergunta pelo sentido último da vida humana não é insensata. Segundo essa alma
inquieta, teremos de pensar no fim da viagem, “de reflectir no que diremos ao
Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos”.
Para que uma caminhada
faça sentido tem de ter um propósito. Mas, na existência humana, os propósitos
são muitos. Importa hierarquizar os valores que prosseguem. Não podem ser
discutidas, neste espaço, as armadilhas que escondem.
Adopto, aqui, a posição
do grande filósofo da linguagem, L. Wittgenstein (Viena,1989 - Cambridge 1951),
muito marcado pela mística evangélica de L. Tolstoy: “Que sei eu sobre Deus e o
sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no
seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido.
Que este sentido não existe nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i. é,
ao sentido do mundo, podemos chamar Deus e associar-lhe a metáfora de Deus como
um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa
compreender a pergunta pelo sentido da vida. Crer em Deus significa ver que a
vida tem sentido”.
Dir-se-á
que esta e outras posições similares resultam da falta de resignação com a
nossa incurável finitude e de uma sede de realização que não passa de megalomania do desejo, fruto da vontade
doentia de resistir ao inevitável.
Em
vez de falar de megalomania do desejo como
uma doença, porque não dizer que é a expressão do que há de ilimitado no desejo
humano, a sua grande saúde? Os medievais, entre eles Tomás de Aquino, falavam
do desejo de ver a Deus. Mestre
Eckhart, o místico radical, dizia que seria necessário chegar à visão de Deus sem imagens.
No
plano ético, desistir de questionar o presente e tentar alguma pista para o
futuro, seria suicídio moral. Sei que pretender fundamentar e sustentar um
sentido moral incondicional, sem uma energia infinita, parece impossível.
Afinal, porque terei de ser alguém realmente ético, mesmo quando essa atitude
só me traz inconvenientes?
2.
Se ninguém pode
provar a existência de Deus, também não há quem possa provar a sua não existência,
mas não é indiferente o que se diz num ou noutro sentido. Como diz T. Halík, há
tantos tipos de ateísmo como de fé: o ateísmo frívolo que, tal como Esaú, vende
a sua herança de fé por um prato de lentilhas; o “esquecimento de Deus” que
preenche esse espaço com ídolos substitutos, de todos os tipos; o ateísmo enfatuado,
para o qual ”Deus não deve existir”, aliás, “se houvesse deuses, como
suportaria eu não ser um deles?”; o ateísmo libertador do deus imaginário, uma projecção
aterrorizadora. Há, ainda, um triste e doloroso ateísmo: “eu gostava de
acreditar, mas há tanta amargura dentro de mim por causa do meu próprio
sofrimento e da dor do mundo, que sou incapaz de acreditar.”
Não se pode esquecer uma dolorosa “perda
da fé”, a morte da fé na cruz do nosso mundo, quando o individuo mergulha nas
trevas interiores e exteriores, “longe de todos os sóis”, quando a escura
sombra da cruz cai sobre ele. Muitos já tiveram esta experiência em certos
momentos das suas vidas. Na história do Evangelho este tipo de ateísmo exprime-se
no momento do grito de Jesus na cruz: “Meu Deus, porque me abandonaste?”
Chesterton exprime-o numa passagem notável: “deixemos que os ateus escolham um
deus para si. Encontrarão uma divindade que, também ela, manifestou o seu
isolamento; encontrarão, apenas, uma religião em que Deus, por um instante,
pareceu ser um ateu”.
3. Essa é a verdade de Sexta-Feira
Santa. Depois, a longa e silenciosa espera de Sábado Santo traz outra mensagem, não menos verdadeira,
embora muitos tenham adormecido, perdendo assim essas primeiras horas da manhã.
S.
João da Cruz, o místico da noite escura da alma, deixou-nos um desenho da
Crucificação, visto de cima, a
perspectiva do Pai que inspirou a pintura de S. Dali. Visto de cima, esse
momento tenebroso assume um aspecto bastante diferente: a derrota é vitória… é a morte da morte. O ser humano não cai
numa escuridão infindável, regressa à luz. A fé cumpriu a sua missão de
peregrina, para se dissolver no reino do amor.
Nós
ainda estamos a caminho. A fé cristã - ao contrário da religiosidade natural, fácil
e despreocupada - é sempre uma fé em processo de ressurreição. Encontra-se em fases muito diversas,
ao longo das nossas vidas. O comentário irónico de que a fé é uma muleta para fracos e coxos, dispensável pelos fortes,
pode ser, apenas, um expediente de conversa. Prefiro a metáfora de cajado do peregrino, que todos somos.
O
livro, Paciência com Deus, não
pretende ser nenhum manual de viagem. É um testemunho, muito reflectido e
documentado, de uma grande peregrinação, atenta a tudo o que encontrou pelo
caminho, sem dar lições. Quer ajudar a Igreja a vencer a tentação apologética
de dar respostas antes de ouvir e aprofundar as perguntas, mas não só. Procura,
de mil maneiras, provocar crentes,
agnósticos e ateus para o facto de sermos todos companheiros e que a verdade acontece
ao longo do diálogo e do silêncio.
A amizade também.
Frei Bento Domingues,
O.P.
in Público 21.07.2013
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