20 julho 2013

Nicolete, a desimpressionista

   
O impressionismo caracteriza-se por nos oferecer uma imagem difusa da realidade. Não é desenho, não é retrato, é uma evocação da beleza das coisas sem contornos definidos nem definições com limites. Que a Nicolete não goste ou não queira deixar-se impressionar, tudo bem. O problema é ela não ter gosto que os outros se impressionem, que se deslumbrem diante do que é bonito, que desfrutem a beleza que os dias nos apresentam. São 8,30h da manhã. A neblina paira sobre o rio dando a impressão de um véu que simula esconder para melhor chamar a atenção. A água, cor de prata, reflecte o canavial em traços e manchas ondulantes ao sabor da corrente. Alguém exclama: hoje o dia está lindo! Que salmo havemos de cantar! E a Nicolete: salmo? Achas que isto está bom para salmos? Estes dias assim são horríveis, estes dias só dão dores. Nem para as hortas servem. Qual salmo nem salmo! A sala ficou em silêncio. Um silêncio que fazia lembrar os mosteiros dos Alpes onde os monges, no grande silêncio, vão interiorizando as horas do dia. Entretanto, numa ondulação invisível, o aroma do café encheu a casa, coisa que nunca impressionou a Nicolete. As hortenses este ano estão lindas, comentou alguém. E ela: lindas? Com tantos paus secos lá pelo meio estão uma grande beleza! Resposta: não os vejo, só vejo as folhas viçosas e os novelos das flores. Mais uma vez silêncio. Algum tempo depois, já no carro em ritmo lento para se poder observar a paisagem e absorver o perfume da manhã, surgiu o mar ao fundo. Uma exclamação: o mar hoje está lindo! Que bonito está hoje o mar! E a Nicolete: está lindo está! Num dia que parece inverno e com esta aragem, está mesmo bonito. Deus me livre! Resposta: mas uma coisa bonita é sempre bonita, e o mar é bonito em todas as estações. E ela: está bonito para ti que só gostas de coisas estranhas e esquisitas! Já num Centro de Jardinagem o início do diálogo inverteu-se. Diz a Nicolete: as flores estão todas horríveis, não há aqui nada de jeito. Resposta: vê lá melhor, talvez encontres alguma de que gostes. E ela: qual? Só se fosse um maracujá. Mas não vale a pena, no inverno morre tudo com a geada. Resposta: mas no inverno podes protegê-lo da geada com uma sombrinha de praia. E a Nicolete: só tens ideias malucas! Mas lá veio o maracujá para a sua nova morada, um pouco apreensivo com o que lhe poderá acontecer ainda antes do inverno. De regresso a casa entraram num supermercado para comprarem qualquer coisa para o almoço. Nicolete: estes supermercados estão na última, acabou a classe média. Resposta: agora já só os pobres é que compram. E ela: os pobres? Quais pobres? Resposta: os que têm pouco dinheiro e procuram os produtos de marca branca. E ela: isso é o que tu pensas! Depois silêncio a caminho de casa onde o sabor de mais um cafezinho acompanhou a exclamação: a nossa magnólia está linda, há dias que ando fascinada com ela. Tem flores muito bonitas, vou tirar-lhe uma fotografia. E a Nicolete: para quê? O ano passado estava mais bonita e não me lembro de teres dito nada. Nesse momento cruzaram-se os olhares e a seguir os risos sinceros de ambas as partes. Quem visse de fora este quadro, que na realidade durou muito mais tempo que estes breves minutos de leitura, talvez fosse levado a pensar que isto era uma representação ensaiada. Mas não, foi tudo espontâneo e verdadeiro. O riso também. Verificando que a Nicolete tinha consciência da sua negatividade, a Teresa exclamou: como consegues ser tão negativa e criar um ambiente em que só apetece escrever o Salmo da desgraça de um dia se ter nascido? A resposta foi só um abanar de cabeça. Aquele abanar de cabeça de quem se julga realista, sensato, neste caso sensata, com a verdadeira razão das coisas. Ao ouvir esta história, por vários motivos inclusive o som do nome, lembrei-me do Coelete, personagem dum livro da Bíblia. Para muita gente será uma citação batida, mas representa um modo de olhar para a vida que pelos vistos acompanha o ser humano até ao fim dos tempos. Começa assim: “Vaidade das vaidades – diz Coelete – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra lhe sucede, enquanto a terra permanece para sempre. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar para novamente tornar a nascer. O vento sopra em direcção ao sul e gira para o norte; girando, girando vai o vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar e, contudo, o mar não transborda: embora chegados ao fim do seu percurso, os rios voltam a correr. Toda a palavra é enfadonha e ninguém é capaz de a explicar. A vista não se sacia de ver, nem o ouvido se farta de ouvir. O que foi é o que será; o que sucedeu é o que sucederá; nada há de novo debaixo do sol. Mesmo que se afirmasse: Olha, isto é novo! – já sucedeu noutros tempos muito antes de nós. Não há memória dos antepassados, e também aqueles que lhes sucedem não serão lembrados pelos que hão-de vir depois” (Coelete 1,2-11). Ainda assim acho melhor o doce amargo do Coelete que o amargo azedo da Nicolete. Causa-me impressão.

Frei Matias. O.P.

14.07.2013

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