O impressionismo
caracteriza-se por nos oferecer uma imagem difusa da realidade. Não é desenho,
não é retrato, é uma evocação da beleza das coisas sem contornos definidos nem
definições com limites. Que a Nicolete não goste ou não queira deixar-se
impressionar, tudo bem. O problema é ela não ter gosto que os outros se
impressionem, que se deslumbrem diante do que é bonito, que desfrutem a beleza
que os dias nos apresentam. São 8,30h da manhã. A neblina paira sobre o rio
dando a impressão de um véu que simula esconder para melhor chamar a atenção. A
água, cor de prata, reflecte o canavial em traços e manchas ondulantes ao sabor
da corrente. Alguém exclama: hoje o dia está lindo! Que salmo havemos de
cantar! E a Nicolete: salmo? Achas que isto está bom para salmos? Estes dias
assim são horríveis, estes dias só dão dores. Nem para as hortas servem. Qual
salmo nem salmo! A sala ficou em silêncio. Um silêncio que fazia lembrar os
mosteiros dos Alpes onde os monges, no grande silêncio, vão interiorizando as
horas do dia. Entretanto, numa ondulação invisível, o aroma do café encheu a
casa, coisa que nunca impressionou a Nicolete. As hortenses este ano estão lindas,
comentou alguém. E ela: lindas? Com tantos paus secos lá pelo meio estão uma
grande beleza! Resposta: não os vejo, só vejo as folhas viçosas e os novelos
das flores. Mais uma vez silêncio. Algum tempo depois, já no carro em ritmo
lento para se poder observar a paisagem e absorver o perfume da manhã, surgiu o
mar ao fundo. Uma exclamação: o mar hoje está lindo! Que bonito está hoje o
mar! E a Nicolete: está lindo está! Num dia que parece inverno e com esta
aragem, está mesmo bonito. Deus me livre! Resposta: mas uma coisa bonita é
sempre bonita, e o mar é bonito em todas as estações. E ela: está bonito para
ti que só gostas de coisas estranhas e esquisitas! Já num Centro de Jardinagem
o início do diálogo inverteu-se. Diz a Nicolete: as flores estão todas
horríveis, não há aqui nada de jeito. Resposta: vê lá melhor, talvez encontres
alguma de que gostes. E ela: qual? Só se fosse um maracujá. Mas não vale a
pena, no inverno morre tudo com a geada. Resposta: mas no inverno podes
protegê-lo da geada com uma sombrinha de praia. E a Nicolete: só tens ideias
malucas! Mas lá veio o maracujá para a sua nova morada, um pouco apreensivo com
o que lhe poderá acontecer ainda antes do inverno. De regresso a casa entraram
num supermercado para comprarem qualquer coisa para o almoço. Nicolete: estes
supermercados estão na última, acabou a classe média. Resposta: agora já só os
pobres é que compram. E ela: os pobres? Quais pobres? Resposta: os que têm
pouco dinheiro e procuram os produtos de marca branca. E ela: isso é o que tu
pensas! Depois silêncio a caminho de casa onde o sabor de mais um cafezinho
acompanhou a exclamação: a nossa magnólia está linda, há dias que ando
fascinada com ela. Tem flores muito bonitas, vou tirar-lhe uma fotografia. E a
Nicolete: para quê? O ano passado estava mais bonita e não me lembro de teres
dito nada. Nesse momento cruzaram-se os olhares e a seguir os risos sinceros de
ambas as partes. Quem visse de fora este quadro, que na realidade durou muito
mais tempo que estes breves minutos de leitura, talvez fosse levado a pensar
que isto era uma representação ensaiada. Mas não, foi tudo espontâneo e
verdadeiro. O riso também. Verificando que a Nicolete tinha consciência da sua
negatividade, a Teresa exclamou: como consegues ser tão negativa e criar um
ambiente em que só apetece escrever o Salmo da desgraça de um dia se ter
nascido? A resposta foi só um abanar de cabeça. Aquele abanar de cabeça de quem
se julga realista, sensato, neste caso sensata, com a verdadeira razão das
coisas. Ao ouvir esta história, por vários motivos inclusive o som do nome,
lembrei-me do Coelete, personagem dum livro da Bíblia. Para muita gente será
uma citação batida, mas representa um modo de olhar para a vida que pelos
vistos acompanha o ser humano até ao fim dos tempos. Começa assim: “Vaidade das vaidades – diz Coelete –
vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o
trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra lhe
sucede, enquanto a terra permanece para sempre. O sol se levanta, o sol se
deita, apressando-se a voltar ao seu lugar para novamente tornar a nascer. O
vento sopra em direcção ao sul e gira para o norte; girando, girando vai o
vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar e, contudo, o mar não
transborda: embora chegados ao fim do seu percurso, os rios voltam a correr.
Toda a palavra é enfadonha e ninguém é capaz de a explicar. A vista não se
sacia de ver, nem o ouvido se farta de ouvir. O que foi é o que será; o que
sucedeu é o que sucederá; nada há de novo debaixo do sol. Mesmo que se
afirmasse: Olha, isto é novo! – já sucedeu noutros tempos muito antes de nós.
Não há memória dos antepassados, e também aqueles que lhes sucedem não serão
lembrados pelos que hão-de vir depois” (Coelete 1,2-11). Ainda assim acho
melhor o doce amargo do Coelete que o amargo azedo da Nicolete. Causa-me
impressão.
Frei Matias. O.P.
14.07.2013
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